Imagina esse cenário: Em 1914, o Império Alemão conseguiu invadir a França e venceu a Primeira Guerra Mundial, mudando completamente a história que a gente conhece (pra quem não sabe, a Alemanha perdeu a WW1). A vitória alemã reconfigurou o mapa da Europa e, no Brasil, provocou profundas divisões.
A elite agrária e industrial, concentrada no sul, simpatizava com o projeto expansionista alemão e seu modelo autoritário. Já as classes populares e os intelectuais de esquerda, majoritários no norte e nordeste, apoiavam ideais mais democráticos.
Em 1930, essas tensões explodiram em uma guerra civil sangrenta. O sul (região sul do Brasil, o Rio de Janeiro, Espírito Santo e parte de São Paulo, Mato Grosso do Sul e Minas Gerais), com o apoio militar alemão, formou a República Nacionalista Brasileira (RNB), enquanto o norte e nordeste (e partes de MS, MG e SP) formaram a República Popular Brasileira (ou Frente Popular). A guerra se arrastou por anos e devastou o país.
Alma quebrada se passa nesse contexto, na antiga fronteira entre Minas Gerais e Espírito Santo, e você já pode ler a parte 1 aqui (se ainda não tiver lido).
Lembrando que essa é uma versão ainda sem revisão, então sejam bonzinhos e perdoem os erros.
Capítulo 3
— Você veio da RNB, não veio? — a garota perguntou assim que saímos para a luz do dia. Poeira e fumaça irritavam meu nariz.
Eu nem tive tempo de me recuperar de nada, quando dei por mim, eles já estavam me empurrando abrigo afora perguntando se eu iria com eles.
— Não se preocupa, nós acolhemos refugiados todos os dias — ela se apressou em dizer depois que tudo o que ouviu de mim foi silêncio. — Como você se chama?
— Tomas — respondi olhando para Adrian na expectativa de que meu nome causasse alguma reação nele. Nada. Ele sequer olhou para trás. Continuava com os olhos fixos na estrada destruída à nossa frente.
— Eu sou a Asani. As coisas estão bem caóticas perto da fronteira, mas nós estamos resistindo bem.
— Você não cansa de fazer propaganda, né? — Adrian falou com uma voz mais aguda que o normal e olhou meio de lado para Asani, recebendo um tapinha no ombro como resposta. Os dois riram de um jeito tão cúmplice que fez meus ossos virarem pedras de gelo.
— Não liga não, o Adrian é sempre ranzinza assim.
— Vocês... Ahn, são daqui? — Eu queria perguntar outra coisa, mas não consegui.
— Da República Popular, você fala?
— É.
— Somos. Nós crescemos juntos na escola do exército.
— Ah... — Então nesse mundo ele não viveu no abrigo para órfãos de guerra comigo.
— Mas não precisa se preocupar, Tomas. — Asani pousou a mão sobre meu braço, o toque macio e caloroso sobre minha pele. — Nós vamos cuidar de você.
Adrian bufou alto.
— O que foi? — Ela deu uma corridinha charmosa para se colocar na frente dele, que abaixou a balançou a cabeça.
— Ele pode ser um infiltrado nacionalista — disse, cuspindo as palavras.
— Eu não sou.
— É exatamente isso o que um infiltrado diria. — Ele virou a cabeça para me olhar meio de lado.
— Então sou um péssimo infiltrado, porque vim parar debaixo de um bombardeio.
Asani deu uma risadinha e veio para o meu lado, batendo o ombro no meu.
— Nem ele acredita nisso.
Adrian bufou de novo. Suor escorria por sua nuca, descendo até as costas, onde molhava o macacão cinza.
Eu queria parar de pular destroços, puxá-lo pela mão e obrigá-lo a olhar nos meus olhos até se lembrar de mim. Mas não havia do que lembrar, porque esse Adrian nunca me conheceu. Ele não era o meu Adrian. Essa percepção me fazia mal, então foquei em algo que deixava meu peito menos pesado: saber que o feitiço me trouxe exatamente para o lugar onde ele estava.
Asani continuava puxando assunto, tagarelando sobre os soldados terem violado o acordo de cessar fogo e várias outras coisas sobre essa guerra que eu não entendia e não fazia questão de entender, afinal o princípio era o mesmo: um Brasil dividido em dois.
O músculo de trás da minha coxa esquerda repuxou, trazendo meu foco para a dor nas minhas pernas e para algo que eu ainda não havia me atentado:
— Obrigado. — Virei o rosto para olhar para Asani e seus olhos verdes claros me pegaram desprevenido. Sob a luz do sol, eles brilharam quase azuis.
— Hm?
— Por me salvar das bombas.
— Óbvio, né? Eu não ia te deixar deitado lá feito uma manga podre. — Riu. E era uma risada tão gostosa.
Meu peito se expandiu e, quando vi, já estava rindo também. Tinha algo nessa menina que trazia leveza aos meus pés, ainda que eles estivessem cruzando um campo minado.
E foi essa percepção que me fez esticar os dois braços, minha voz escapando apertada na garganta.
— Para!
— O que foi? — A pergunta de Asani foi seguida por um clique baixo, então a névoa azulada cobriu o corpo de Adrian em segundos, mas minhas mãos já estavam segurando as mãos dele, o puxando para longe.
Ele tossiu, o peso de seu corpo caindo sobre mim enquanto nos afastávamos depressa da fumaça.
Por sorte, o vento vinha das nossas costas e levou a nuvem azul para longe.
— Mas que porra é essa? — perguntei quando vi o sangue escorrendo pela boca e pelo nariz dele.
Asani estava pálida, os olhos arregalados olhavam para Adrian como se vissem um fantasma.
Ela abriu a mochila depressa, enquanto eu me abaixava, deitando Adrian no meu colo, e retirou uma toalha marrom e uma garrafa térmica. Apoiou a toalha no braço e a encharcou, depois virou a cabeça de Adrian para o lado e limpou o sangue que escorria pela pele.
A respiração dele foi acalmando, ainda que continuasse pesada e intercalada por tosses cada vez menos violentas.
— O que é aquilo? — Ergui a mão e apontei para o nada.
— Uma mina azul. Mata em segundos.
Arregalei os olhos. Como ele ainda estava vivo?
— Quando disparou, você já estava o puxando para longe — Asani respondeu a pergunta que nem fiz em voz alta.
Uma sequência de tosses secas fez o corpo de Adrian sacudir, mas não saía mais sangue de sua boca.
— Pensei que fosse uma mina movediça — eu disse, sem despregar o olhar do rosto azulado pela fumaça. Minhas mãos tremiam. — Pensei que ele fosse afundar.
— Você salvou ele.
— Eu não estava atento, poderia ter sentido o campo minado antes, eu poderia... — As palavras se misturaram e se perderam no espaço entre meus pulmões e minha boca. Eu poderia tê-lo perdido de novo.
— Te... — Adrian tentou falar, mas era só rouquidão. — Ir.
— Você aguenta andar? — Asani deve ter entendido a mensagem pelo olhar arregalado e a testa franzida. Ele fez que sim com a cabeça. — Estamos muito expostos aqui, temos que continuar até a colônia.
— Tudo bem. — Ajudei Adrian a se levantar e ofereci meu corpo como apoio pelo resto do caminho.
Capítulo 4
Cada centímetro do meu corpo estava doendo quando chegamos à colônia. Adrian tossiu pelo trajeto inteiro e apagou assim que o colocamos numa maca no chão, entre muitas outras macas ocupadas no corredor sem fim do hospital improvisado.
— Toma um cafezinho. — Asani me entregou uma caneca grande, coberta até a metade pelo líquido preto. Eu ainda estava sentado do lado de Adrian, mesmo que meu corpo implorasse para deitar. — Algo me diz que você também não vai conseguir dormir até ele acordar. — E ela estava certa. A pele marrom, num tom de terra molhada, não tinha o brilho de antes. Seus cabelos castanhos claros estavam desgrenhados e olheiras fundas marcavam a parte inferior de seus olhos, que me encararam estreitos.
— Eu… — Só agora eu me permitia deixar escapar um pouco daquela dor e daquele peso. — Fiquei assustado.
Minha confissão não causou nela nada além de um suspiro longo. Deixamos os gemidos de agonia dos outros pacientes, as conversas baixas, as tosses e o entra e sai de pessoas falarem por nós. Era um caos familiar para crianças de guerra feito eu.
— Como você sabia da mina? — perguntou depois de um tempinho, parecendo ainda mais cansada do que antes.
— Hiperpercepção.
— Caramba…
Eu conhecia a raridade do meu poder no meu mundo, mas não tinha pensado se ele seria raro ou comum aqui.
— Mas eu estava desatento, deveria ter previsto as minas muito antes. Aí ele não teria se machucado.
— Ei. — Ela tocou meu braço, puxando minha atenção de volta para si. Minha pele arrepiou. — Não é culpa sua. São as cicatrizes que uma guerra sempre deixa sangrando.
— De onde eu venho, sobrou muito pouco para se sangrar.
Asani estreitou os olhos, e eu não precisava de hiperpercepção para perceber que ela havia notado algo de errado.
— É por isso que você fugiu pra cá?
— Não.
Não completei a resposta.
De novo aquele silêncio barulhento caiu sobre nós.
— A gente deveria descansar, mas preciso ajudar na evacuação. Aceito sua ajuda, já que o governo não vai fazer nada, como sempre.
— Por que não?
— Porque essas fronteiras são dos feridos e dos exilados. — Ela se apoiou com a mão e se levantou, como se pesasse mil quilos. — Morrer seria um favor que não vamos fazer.
— A gente vai deixar ele aqui sozinho?
Asani encarou Adrian e abriu um sorriso largo.
— Ele é ranzinza demais pra morrer por causa de um gazinho tóxico. — O carinho na voz bagunçou meu estômago.
— Prefiro ficar até ele acordar.
— Então se ajeita aqui e deita um pouco. Venho te chamar se as coisas apertarem muito.
— Tá bom. — Olhei o espaço entre Adrian e a maca vizinha, ocupada por uma mulher pequena e inquieta, que gemia baixinho e sem parar. Me ajeitar perto de Adrian parecia tão certo e, ao mesmo tempo, tão errado. — Vocês dois… — Tomei coragem de perguntar antes de Asani sair. — São namorados ou algo assim?
Ela olhou para ele daquele jeito dolorido e carinhoso que me quebrava, e a resposta deixou de importar.
— Não — ela disse com a boca, mas os olhos respondiam algo terrível e dolorosamente familiar. Ela o amava, e, talvez por conhecer bem aquele rosto dormindo sobre a maca, eu sabia que ele a amava também.
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Como você já sabe, esse conto é uma das 6 histórias inéditas que estarão na coleção Clichês em rosa, roxo e azul. Aliás, você já garantiu seus livros? Então corre para apoiar o financiamento coletivo: catarse.me/cliches
Te vejo na próxima News :)
Com amor,
Maria