Olá, mais uma terça-feira chegou e, com ela, os capítulos da semana do conto Alma Quebrada. Caso ainda não tenha lido o começo da história, pode ler a parte 1 aqui e a parte 2 aqui.
E não esquece de deixar um like e um comentário para eu saber se você está gostando, viu? :)
Mas, antes, deixa eu te fazer uma pergunta:
Agora, sem mais delongas, vamos aos capítulos!
Lembrando que essa é uma versão ainda sem revisão, então sejam bonzinhos e perdoem os erros.
Capítulo 5
Eu estava andando pelos destroços da casa de órfãos. Sangue escorria pela minha testa e o mundo girava em volta de mim.
— Nós temos que ir, Tomas. — Adrian me puxava pela mão. — Eles podem voltar.
Nossas mãos continuaram entrelaçadas quando cruzamos o país até encontrarmos abrigo no meio do nada. Nós plantamos juntos nossa horta, ele cuidava das flores e eu dos pés de mexerica.
Mas a guerra nos seguiu. Ela sempre segue, não importa para onde a gente vá. Eu nunca deveria ter deixado ele ir, mesmo que parecesse a coisa certa a se fazer por nós e pelo nosso futuro.
Acho que é por isso que não consegui deixá-lo agora, mesmo que Asani tenha dito que ele ia ficar bem.
Deitei desajeitada, com o corpo virado para ele, e peguei no sono olhando para o contorno de seu queixo. Quando acordei, os olhos castanhos muito escuros estavam fixos em mim, lendo meu rosto. Perdi a capacidade de respirar e de perceber o mundo ao meu redor. Cada pedacinho da minha pele arrepiou e meus dedos formigaram para tocá-lo.
— Não sei quem você estava procurando. — A voz grave e bastante rouca fez meu corpo flutuar, para depois jogá-lo com força no chão. — Mas eu não sou esse cara.
Abri a boca. Nada saiu.
— Eu… — Por que a dor não passava? — Eu sei.
Ele riu pelo nariz e então olhou para o teto encardido.
— Obrigado por me salvar e me carregar até aqui. — Encarou meus olhos e senti de novo aquela energia me atrair para ele.
— Sua garota me salvou antes. Eu devia uma.
— Ela não é minha garota. — Cruzou os braços sobre a barriga e o esforço para falar mais alto que eu o fez tossir.
— Tá bom. — Dei um tapinha leve em seu ombro e me levantei devagar, percebendo que algumas partes do meu corpo estavam doendo mais do que antes. — Agora que você acordou, vou ajudar com a evacuação.
Adrian me puxou de repente e perdi o equilíbrio, quase caindo sobre ele. Nossos rostos ficaram muito perto e o olhar dele desceu para os meus lábios. Me afastei antes que fizesse algo péssimo como beijar esse cara que não era o meu cara. Mas ele continuava me prendendo, mantendo meu rosto perto do seu.
— Você sabe que a gente não dá conta de evacuar todas essas pessoas, né? — disse baixinho perto do meu ouvido. Ergui a cabeça e olhei para o corredor lotado. — Não podemos salvar todo mundo.
— Mas podemos tentar. — Me pus de pé e ofereci as duas mãos para ele. — Você aguenta vir? — Ele fez que sim com a cabeça, porém se levantou com muita dificuldade.
Sua respiração estava alta e pesada conforme ele me seguia hospital afora.
— O mais engraçado — falou baixinho atrás de mim — é que sinto que te conheço, mesmo sabendo que nunca te vi na vida.
Eu me virei para olhar para ele, mas não tive tempo para pensar em uma resposta.
— Tem algo vindo nessa direção.
— Merda! — ele disse alguma outra coisa, mas sua voz foi coberta pelo som estridente da sirene.
Adrian tentou andar rápido, mas uma crise de tosse o fez parar perto de uma maca improvisada vazia. Vi Asani no meio do caos, vestida com um macacão preto e segurando uma arma bem grande com a mão. Ela parecia uma pessoa diferente, sem o sorriso enorme e o brilho nos olhos. No lugar da expressão suave, um vinco em sua testa dizia que as coisas tinham dado errado rápido demais. Ainda assim, olhar para ela fazia o mundo ao redor desfocar. Todas aquelas pessoas correndo, chorando e morrendo em volta de nós eram só o pano de fundo triste de um quadro bonito.
— Você consegue correr? — gritou para Adrian, mas mal dava para escutar. O alarme era como uma faca enfiada no cérebro.
Ele fez que sim com a cabeça, mas eu duvidava muito que conseguisse no meio daquela tosse imparável. Estendi a mão para que ele agarrasse e o peso de seu corpo me desequilibrou por um instante.
— Bombardeios? — perguntei o que eu já pressentia. Asani só confirmou com um aceno.
— Nós precisamos entrar fundo na mata bem depressa. — Virou as costas. Adrian agarrou seu braço com a mão que estava livre.
— E os caminhões? — Saiu como uma tosse.
Asani balançou a cabeça e seguiu em frente depressa. Ela não precisava dizer que não havia como evacuar todo mundo. Mesmo assim olhei para trás, para o corredor caótico. Ainda tinha tanta gente deitada no chão…
Os dedos de Adrian envolveram meu queixo e viraram meu rosto para a frente.
— Melhor não pensar — disse logo antes de apertar meu braço com força e me obrigar a correr atrás de Asani.
Capítulo 6
— A gente tem que ir mais rápido. — Puxei de leve o braço de Adrian. Asani ia se afastando mata adentro.
— Não dá! — Ele me encarou com os olhos apertados.
— Tem bombardeiros se aproximando da colônia. — Atropelei as palavras, a urgência que queria colocar nos meus passos. Ele tossiu e tossiu, mas acelerou. Eu podia sentir o pavor e a destruição.
Aviões voavam baixo, tacando bombas que faziam o chão tremer ao caírem. Tropecei por entre os galhos, me controlando para nunca olhar para trás. Eu não queria ver a fumaça preta manchando o céu, já bastava sentir o sabor queimado de morte quando precisava abrir a boca para respirar.
Meu coração batia com força, bombeando sangue para que meu corpo pudesse fugir.
Eu mal conseguia respirar, Adrian não parava de tossir. Asani havia sumido no meio das árvores. Eles nos alcançariam nesse ritmo, eu podia sentir as botas pisando nos destroços e nas folhas secas.
Adrian soltou meu braço e parou no meio da mata, se inclinando numa tosse sem fim. Eu me virei para encará-lo.
— Sem mim… mais rápido.
— Não.
Atrás dele, a fumaça preta tomava o céu e dava para ver as chamas altas de um incêndio ao longe. Meu corpo queria correr, mas eu nunca o deixaria para trás.
Ele apontava para algum lugar à sua esquerda, mas tudo o que eu via era troncos de árvores e plantas. Então senti a abertura na raiz, escondida no meio da mata. Estendi as mãos para Adrian, que se apoiou em mim e se deixou ser levado até a caverna escondida no coração de uma árvore.
O ar denso e úmido me apertou, trazendo um odor rançoso de terra e madeira molhada. Ajudei Adrian a se sentar no espaço pequeno.
— Ela vai nos encontrar aqui — ele disse, encostando a cabeça no tronco. Me ajeitei ao lado dele, deixando que se apoiasse no meu ombro. O feixe de luz que entrava me ajudava a ver seus olhos abertos encarando os meus, a respiração difícil. Meu coração com o dobro do peso. — Seu rosto está sangrando — sussurrou, limpando algo melequento da minha bochecha. O calor de suas mãos afundou meu peito. Fechei os olhos e chorei. Os braços dele envolveram meu corpo, mas minha mente voava para outro lugar.
As bombas caindo como chuva, arrasando todas as partes de chão que encontravam. Eu costumava dormir e sonhar com esse barulho, não lembrava de um mundo sem ele. Até o ataque cair sobre minha cabeça. Acordei coberta por escombros, minha voz aguda de criança gritava para ninguém. Os dedos finos e longos de Adrian encontraram os meus no meio da bagunça de tijolos, cimento, poeira e fumaça. Ele sempre me encontrava, quando éramos ainda menores e eu gostava de me esconder nas ruínas da cidade antiga ou em algum cômodo escuro do abrigo. Quando eu fugia e me prendia dentro de algum armário empoeirado, esperando que os tiros e aviões passassem logo, ele me achava e vinha se esconder comigo.
Pensar que ele tenha morrido sozinho, sem encontrar meus dedos nas trincheiras, me destrói aos poucos.
Esse Adrian se afasta de mim com uma sequência de tosses secas. Fecho os olhos na esperança de que o mundo silencie à nossa volta, mas o barulho não vem de fora, sei disso. Vem de dentro, do fundo da minha memória.
Eu nasci sentindo mais do que deveria. No dia em que o abrigo foi bombardeado, não consegui dormir. Algo me inquietava. Começa com um aperto no fundo do peito e cresce até virar uma imagem na cabeça. Eu vi as bombas antes de elas caírem, e meu medo me fez arrastar Adrian para o porão. Só nós dois sobrevivemos.
Se eu tivesse ido com ele para as trincheiras, talvez…
Fechei os olhos e tentei não pensar nas milhões de possibilidades enquanto o mundo caía lá fora.
Adrian dormia pesado quando passos apressados vieram na nossa direção, quebrando galhos no caminho até a caverna, como se soubessem onde procurar.
Estava escuro lá fora, então mal dava para ver a silhueta da pessoa se esgueirando para dentro da caverna apertada. Eu já sabia que era Asani, mesmo antes de ouvir seu suspiro.
— Vocês estão aqui! — Ela se abaixou para conferir Adrian, seu rosto ficando muito perto do meu.
— Ele está com um pouco de febre — avisei, sentindo um gosto azedo na boca.
— Precisamos chegar no Forte, estamos nos reunindo lá.
Adrian se mexeu, voltando a se apoiar em mim.
— É longe?
Ela apenas olhou para mim, não precisava dizer mais nada.
— Não podemos fazer barulho.
— Ele tosse quando faz muito esforço, não…
Asani se sentou, colocando as pernas sobre as de Adrian.
— Os soldados nacionalistas estão espalhados pela mata, daqui até o Forte. Se eu te ensinar o caminho mais seguro, acho que você consegue chegar lá.
— Sozinha?
— Uhum. — Ela fez que sim com a cabeça, sem me encarar.
— Eu não vou.
— É uma questão de tempo até os soldados nos encontrarem aqui.
— Eu. Não. Vou.
Asani abriu a boca algumas vezes, mas não disse nada. Tirou a mochila das costas e a apoiou sobre o colo, abrindo e retirando dela uma garrafa grande de água e um potinho que parecia preto sob a pouca luz que entrava.
— Abre o macacão dele, por favor?
Desci o fecho até abaixo do umbigo. O peito de Adrian subia e descia depressa. Asani entregou o potinho para mim e o gel frio deixou as pontas dos meus dedos melequentas e sensíveis. Olhei para a pele quente, para os pelinhos no peito, e meu coração parou de bater. Tocá-lo era a coisa mais certa, e a mais errada, que eu poderia fazer. Enquanto meus dedos espalhavam o gel, minha mente se prendia em cada cicatriz, e eram muitas.
— É difícil viver na fronteira — Asani murmurou, os olhos vidrados no movimento dos meus dedos.
Havia uma cicatriz feia na clavícula esquerda, a ferida deve ter sido profunda. Que tipo de vida machuca tanto?
— O que vocês dois estavam fazendo naquele lugar? — perguntei, buscando os olhos verdes na escuridão. — Lá onde me encontram?
— Investigando o avanço das tropas nacionalistas — ela respondeu seca e deu um gole na água.
Fechei a tampa do potinho e puxei o zíper do macacão de Adrian para cima, notando como sua respiração parecia mais branda.
— Então vocês são soldados — eu disse, olhando para a cicatriz no rosto de Adrian. — Explica muita coisa.
— Não. Soldados lutam na linha de frente. Nós procuramos maneiras de fugir da luta. Lugares seguros para as pessoas se esconderem. Nós protegemos o povo. Soldados os abandonaram aqui quando viram que as tropas avançariam pelo leste. Eles os deixaram para trás.
— E aí vocês vieram pra ajudar.
— Mas não ajudamos muito. Quase nunca conseguimos. — Ela escorou as costas na parede de raiz. — E você? O que estava fazendo lá?
— Fugindo.
Ela deu uma risadinha baixa e ajeitou as pernas. Estávamos nos apertando para caber os três naquele buraco. Ironicamente não era a primeira vez.
— Você não é desse mundo, né? — A pergunta me pegou de surpresa, acelerando meu coração a ponto de doer. — Não se preocupa, nós já vimos casos como o seu antes, pessoas que viajam para outro mundo em busca da alma gêmea — disse, de um jeito meio sarcástico. — Você está procurando alguém?
Meus olhos escorregaram até o rosto de Adrian. Eu não disse nada. Preferi fechar os olhos e apoiar a cabeça na parede que era o fundo da abertura.
— Esse remédio tem um efeito passageiro. — Asani pegou a mochila e me entregou uma manta. — Ele vai ficar melhor por algumas horas, mas…
— O esforço vai fazer ele piorar, né?
A garota mordeu o lábio inferior, mas logo em seguida ergueu o queixo.
— É o melhor que a gente pode fazer agora.
Continua na próxima Newsletter que será enviada na terça-feira, dia 28, às 10h.
Como você já sabe, esse conto é uma das 6 histórias inéditas que estarão na coleção Clichês em rosa, roxo e azul. Aliás, você já garantiu seus livros? Então corre para apoiar o financiamento coletivo: catarse.me/cliches
Te vejo na próxima News :)
Com amor,
Maria